Notícia

1) Francisco é o primeiro papa latino-americano. Na sua opinião, como esse contexto
influenciou seu pontificado?
Foi uma agradável surpresa, pois ninguém esperava um Papa “do fim do mundo”. Mas foi
também o renascimento de uma esperança, pois a tradição eclesial libertadora que havia
nascido na periferia, tão maltratada nas três décadas de “involução eclesial” em relação ao
Vaticano II que antecederam o pontificado de Francisco, estava chegando ao centro da Igreja.
Mais tarde, a canonização de Dom Oscar Romero seria o reconhecimento de um novo perfil
de santidade, forjado nestas terras: os santos das causas sociais. A Exortação Evangelli
Gaudium, programática do seu pontificado, incorporaria em grande parte o Documento de
Aparecida, que ele mesmo presidiu na Comissão de Redação da Assembleia. Por sua vez, o
Sínodo da Amazônia universaliza a causa ecológica como uma causa evangélica e legitima a
configuração de Igrejas indígenas, com o rosto de seus povos. Em suma, o Papa do “fim do
mundo” iria causar um grande desconforto à estabilidade do establishment, ao fazer da
periferia o centro da Igreja e de uma sociedade excludente.
2) O Cardeal Bergoglio foi protagonista na Quinta Conferência Geral do Episcopado Latino
Americano, realizada em Aparecida, Brasil, em 2007. Como o pontificado de Francisco
marcou o magistério da Igreja na América Latina, desenvolvido após o Concílio Vaticano
II?
O Documento de Aparecida tem sua marca. A Conferência foi preparada com o mesmo
controle das conferências anteriores em Puebla e Santo Domingo. Por exemplo, não se
permitiu que a “Tenda dos Mártires” fosse montada nas proximidades da Assembleia. Nem
que teólogos da perspectiva libertadora integrassem a Assembleia. A Marcha das
Comunidades Eclesiais de Base, que caminhou durante toda a noite para culminar na Missa
da Assembleia, esta, para não encontrar-se com a marcha, transferiu a celebração para um
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outro horário, mas o Cardeal Bergoglio estava lá, celebrando com os caminhantes. O
Documento original de Aparecida teve 240 alterações, após aprovação da Assembleia. O Card.
Bergolio não protestou, mas depois, como Papa, praticamente reintroduziu na Evangelii
Gaudium o que havia sido retirado do Documento da Assembleia, uma Exortação que tem
muito a ver com Aparecida. Mais tarde, ele convocou a Primeira Assembleia Eclesial da Igreja
na América Latina e Caribe, justamente para reavivar Aparecida.
3) Como a Igreja na América Latina acolheu e vivenciou a presença de um argentino no
trono de Pedro?
Por um lado, com assombro: um papa “do fim do mundo”, que ousa descer do trono, deixar
o palácio apostólico e começa a desmontar o perfil imperial do papado. Parecia um sonho que
respondia ao que Dom Pedro Casaldáliga argumentava ao justificar sua recusa em fazer
visitas ad limina ao Papa. E ele disse isso a João Paulo II, quando, finalmente, obrigou-o a ir a
Roma. Por outro lado, com esperança, pois se conhecia, sobretudo, sua contribuição à
Conferência de Aparecida. Recém-eleito, em sua primeira viagem por ocasião da Jornada
Mundial da Juventude no Rio de Janeiro, ele foi projetando em seus discursos os eixos centrais
da Exortação Evangelii Gaudium. Em sua viagem à Bolívia e ao Paraguai, ele reconheceu a
cumplicidade da Igreja nos horrores da colonização como um “pecado da Igreja”, não apenas
um pecado de “filhos da Igreja”, e pediu perdão. Em um tom ainda mais forte, fez o mesmo
em sua visita ao Canadá, reconhecendo a conivência da Igreja no genocídio dos aborígenes.
Enfim, o pontificado de Francisco marcou o fim das suspeitas e perseguições de teólogos e
bispos na América Latina e Caribe, que vivenciaram um estado de martírio contínuo, alguns
mesmo depois de mortos, como reconheceu Francisco na canonização de Dom Romero.
4) Como o pontificado do Papa Francisco mudou a Igreja na América Latina?
Certamente, a Igreja na América Latina é a que mais havia avançado na “recepção criativa” do
Concílio Vaticano II. No entanto, é também a que mais retrocedeu nas três décadas de
“involução eclesial” que antecederam o pontificado de Francisco. Ao retomar o processo de
implementação do Concílio, o Papa trouxe novos ares para a Igreja na América Latina e Caribe.
A Conferência de Aparecida já havia apontado nessa direção, mas se não fosse
Francisco, Aparecida teria desaparecido. Foi ele quem resgatou Aparecida com a Evangelium
Gaudium. Um momento singular no pontificado de Francisco foi o Sínodo da Amazônia, que
transcendeu a Região, pois incorporou na obra evangelizadora de toda a Igreja – ecologia,
inculturação, ministerialidade, protagonismo da mulher, uma Igreja companheira de caminho
da humanidade, etc. Além disso, foi um Sínodo que, para articular a Igreja em uma Região
partilahda por nove países e com 105 Igrejas locais, criou não uma Conferência Episcopal, mas
uma Conferência Eclesial – a Conferência Eclesial da Amazônia (CEAMA), a primeira e única
até agora.
5) Que aspecto do ensinamento do Papa Francisco repercutiu particularmente na América
Latina?
O Magistério de Francisco interpela por uma Igreja mais autêntica e profética, comprometida
com a renovação do Vaticano II e a tradição eclesial libertadora, tendo a opção pelos pobres
como seu centro. Nessa perspectiva, algumas das intervenções de Francisco repercutiram
fortemente. Por exemplo, sua firmeza na tomada de posição frente à volta de tradicionalismos,
especialmente na Liturgia, como no caso da missa tridentina. Esta estava alimentando o
imaginário de diversos segmentos eclesiais que se contrapõem abertamente ao Vaticano II
como um todo. Também a tolerância zero e a necessidade de transparência em relação aos
abusos sexuais por parte de clérigos, especialmente envolvendo menores. Pode-se mencionar,
igualmente, a intervenção na Igreja do Chile, em especial, no episcopado. Emblemática foi a
intervenção nos Legionários de Cristo e a condenação do seu fundador – P. Marcial Maciel.
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Outro caso é a intervenção ainda em curso nos Arautos do Evangelho, movimento nascido no
Brasil e, ainda mais contundente, a dissolução dos Sodalicios de Vida Cristã, no Peru, também
com a condenação de seu fundador. Eram anomalias que estavam se tornando a regra.
6) Qual é, em sua opinião, o legado do Papa Francisco para a Igreja universal?
Seu grande legado é ter descentrado a Igreja de si mesma e apontado para os grandes desafios
que a humanidade enfrenta hoje. E o fez a partir dos pobres, das periferias. Nessa perspectiva,
ele foi o primeiro papa a ir além da Doutrina Social da Igreja ao afirmar, na Evangelium
Gaudium, que “este sistema econômico é injusto em sua raiz”, que “esta economia mata”, uma
condenação contundente do capitalismo. Além disso, desde o início de seu pontificado, com
sua visita a Lampedusa, apontou para a questão da migração, fazendo apelo para “a
construção de pontes, não de muros”. Apontou também para os que vivem nas ruas, dando
lhes atenção especial, começando pelo própria casa, o Estado do Vaticano. Um legado de
grandes proporções e implicações está no campo da ecologia. Ao que já era um tema da
Doutrina Social da Igreja, Francisco dedicou uma Encíclica inteira sobre ecologia integral – Laudato Si’, e uma Exortação sobre a crise climática – Laudate Deum.
No âmbito eclesial, destaca-se o trabalho de mais de uma década, dedicado à reforma da Cúria
Romana, culminando na Constituição Praedicate Evangelium, superando seu perfil de
organismo intermediário entre o Papa e as Igrejas Locais para se tornar um organismo de apoio
a ambos. A essa reforma foi incluída a participação de mulheres em postos de governo,
inclusive como Presidentes de Dicastérios. Obra transcendente é também a reforma do Sínodo
dos Bispos pela Constituição Episcopalis Communio, transformando-o em um Sínodo da Igreja,
com a participação do Povo de Deus e o direito de voto das mulheres. O Colégio Cardinalício
também adquiriu um perfil não só mais universal, como integrado por membros de Igrejas da
periferia e com estreita relação com os pobres. O Papa também veio ao encontro da
comunidade teológica, propondo uma teologia intimamente ligada aos processos pastorais e
com total liberdade de investigação, superando décadas de controle e desconfiança. Mas, sua
maior obra é o Sínodo da Sinodalidade, que retoma o processo de recepção do Concílio
Vaticano II e consolida sua eclesiologia.
7) Francisco colocou a sinodalidade no centro de seu pontificado, e a América Latina talvez
tenha sido o continente mais comprometido com essa questão. Que consequências práticas
isso teve ou está tendo no continente?
A Igreja na América Latina já realizou cinco Conferências Gerais de Bispos, precedidas por um
Concílio Plenário no final do século XIX, convocado por Leão XIII. Entretanto, há duas novas
organizações —a CEAMA e o Sínodo da Igreja— que são um imperativo para a sinodalização
das estruturas da Igreja, não apenas na América Latina. Elas desafiam, acima de tudo, a
sinodalização das Conferências Episcopais Nacionais e Continentais. Em uma Igreja Povo de
Deus, os Bispos não podem reservar-se o direito de decidir pelos demais, através de um
organismo composto exclusivamente por Bispos. Nessa perspectiva, a Primeira Assembleia
Eclesial da América Latina e Caribe, realizada em 2021, também desafia processos de
discernimento e tomada de decisões, em nível nacional e continental, por Assembleias
formadas por representantes de todo o Povo de Deus.
8) Uma das principais consignas do Papa Francisco tem sido “iniciar processos e não ocupar
espaços”. Na sua opinião, quais foram os principais processos iniciados por Francisco na
Igreja Católica?
Juridicamente, Francisco poderia ter tomado decisões sozinho e de maneira definitiva.
Contudo, coerente com uma Igreja sinodal, ele preferiu fazer processo, convidar à conversão
e decidir entre todos o que diz respeito a todos. Assim, infelizmente, muito poucas mudanças
estão juridicamente asseguradas, embora uma reforma do Código de Direito Canônico esteja
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em andamento. Francisco precisaria ainda uns dez anos de pontificado para consolidar
mudanças já feitas e outras ainda em andamento. Continuam a depender fortemente do Papa:
a continuidade do processo de recepção do Vaticano II; a implementação de uma Igreja
sinodal; a consolidação da reforma da Cúria Romana; a superação de uma Igreja hierárquica,
clericalista e autorreferencial; a acolhida na comunidade eclesial de católicos em situação
irregular; em suma, uma Igreja comprometida com as grandes causas da humanidade hoje,
como são a crise ecológica, as migrações, uma economia que mata, etc.
9) Na sua opinião, quais são as principais questões em aberto, que o sucessor do Papa
Bergoglio terá que abordar? E como essas urgências serão abordadas?
De fato, há muitas questões em aberto, a começar pela retomada da renovação do Vaticano II,
pois, apesar do pontificado de Francisco, o processo de “involução eclesial” em relação à
renovação conciliar, ainda não está estancado. Persiste o perfil de um cristianismo
sacerdotalizado, centrado no culto e nos ministros ordenados, com função reduzida ao múnus
sacerdotal, em detrimento do múnus profético e do serviço. Nessa perspectiva, é urgente a
mudança de perfil dos seminários, ainda de estilo conventual e tridentino, que forma
“sacerdotes do altar” e não “pastores com cheiro de ovelhas”. Continuam pendentes duas
agendas, que poderiam amenizar o drama da maioria das comunidades eclesiais sem o à
Eucaristia dominical, que é a ordenação de homens casados e de mulheres. Questão séria é o
processo de nomeação de bispos, centrada nos Núncios Apostólicos, sem a participação do
Povo de Deus, inclusive com parca ou nenhuma participação das Conferências Episcopais
enquanto tais. Por fim, se poderia mencionar a necessidade da reforma do Primado, que
juridicamente continua centralizado, acima do Colégio Episcopal e do próprio Sínodo da
Igreja. É urgente e necessário que o Papa volte a ser “sucessor de Pedro e não de Constantino”,
como disse São Bernardo de Claraval ao seu confrade eleito Papa Eugénio III (1145-1153)
Francisco deu os importantes nesta perspectiva.
10) Há quem diga que o pontificado do Papa Francisco teve o mérito de colocar na mesa
todos os grandes problemas da Igreja atual, desde o o das mulheres aos ministérios à
inclusão de pessoas LGBT+; desde o compromisso radical com a paz, a justiça e a ecologia
até o início de uma transformação da Igreja Católica em uma unidade de diversidades, que
também envolve o oecumene cristã, etc., mas que um Concílio é necessário para abordá-los.
O que você acha disso?
Todas essas questões e outras tantas, urgentes e necessárias pendentes de implementação, já
estão incluídas no Vaticano II. O Concílio contém uma grande riqueza ainda não explorada ou
suficientemente compreendida e, acima de tudo, não implementada. Por enquanto, bastaria
revisitar o Vaticano II, mas a partir do contexto de hoje. O mundo mudou, mas as intuições
básicas e os eixos fundamentais do Vaticano II continuam pertinentes e podem continuar
respondendo aos desafios do nosso tempo. O grande desafio, hoje, é fazer uma “segunda
recepção” do Concílio no nosso contexto, o que exige, novamente, uma “recepção criativa”, tal
como aconteceu em Medellín. Para encarnar-se no nosso tempo, o Vaticano II precisa de novas
mediações, capazes de encarnar a novidade perene do Evangelho na precariedade da história.
Um novo Concílio com o episcopado que temos, como mostrou o Sínodo da Sinodalidade,
dificilmente faria avançar o Vaticano II. Além do mais é preciso perguntar-se, em que medida
o episcopado atual está à altura das exigências do nosso tempo, um tempo complexo e de
travessia, que precisa ser tomado como um tempo pascal. A tessitura do risco é a única
garantia de futuro.

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